21 de outubro de 2014

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O texto é de walcyr carrasco, e representa muito bem o que acho. A sociedade não é só chata, walcyr, é rasa e malvada.

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Minha cachorra Luna me faz pensar. É uma husky siberiana branca, com incríveis olhos azuis, capaz de me despertar desejos de liberdade. Observar a maneira como Luna se relaciona com o afeto funciona mais que terapia. Dia desses, um amigo veio me visitar. Alto, bonitão, adora cães. Mal entrou pelo portão, Luna correu a seu encontro abanando o rabo. Deitou no chão e ergueu as patas, exibindo as partes íntimas. Meu amigo adorou. Passou um bom tempo coçando a barriga de Luna, fazendo carinhos. Ambos, felizes.

Pergunto: quando você se interessa por alguém, é capaz de se atirar no chão e se oferecer tão completamente, de patas, digo, braços, abertos? Olhar com aquele jeito pidão que diz:

– Quero carinho! Quero carinho!

Duvido que você já tenha feito algo parecido. Eu nunca, com certeza. Nós, humanos, gastamos horas de papo para descobrir afinidades. Conseguir um cafuné – algo semelhante a uma boa coçada em orelhas caninas – pode demorar séculos! A atitude franca, direta, de minha cachorra, não é melhor? Ganha tempo. Evita longas discussões sobre relacionamento. Vai diretamente ao ponto, sem exigências de compromisso. Meu amigo, depois de muito carinho, entrou em casa. Luna partiu aos saltos, satisfeita. Qualquer cão, macho ou fêmea, age igual. Entrega-se totalmente. A não ser cachorros bravos, que atacam e mordem desconhecidos. Mesmo esses não têm nenhum pudor em pedir carinho aos mais próximos, em abanar o rabo, quando interessados em algum relacionamento. Ou cheirar o traseiro do outro, se o interesse é entre eles mesmos, cães.

Cães são assim. Sem exigências como DR, união estável e, que alívio, sem partilha dos bens. Nesse item, também são sinceros. Tente arrancar um osso da boca de um cachorro, por mais amável que ele seja. No mínimo, mostrará os dentes, rosnando.

Cães são fiéis nos sentimentos, é o que mais importa. Mesmo quando passam necessidades, até fome. Já vi moradores de rua dormindo, enquanto seus vira-latas montam guarda, fiéis. Quantos relacionamentos humanos não terminam porque alguém fica desempregado, sem grana?

O pior é nossa falta de espontaneidade. As restrições sociais impedem alguém de se atirar ao colo de alguém só porque tem vontade. E também de saber aceitar a rejeição, como o cachorro que se retira, de orelhas caídas, para logo em seguida achar outro colo e se atirar novamente. Faz pouco tempo, estava numa festa. Na poltrona ao lado, uma desconhecida conversava com amigos. Tinha um pescoço lindo. Vou ser sincero: eu queria dar uma lambida naquele pescocinho. Mais nada, pelo menos no momento. Só uma simples e honesta lambida. Que aconteceria se eu me aproximasse e lambesse o pescoço da desconhecida? Um escândalo. Gritos. Seu namorado me esmurraria. Alguém pensaria em me internar. Diriam que sou desequilibrado. E, no entanto, só queria dar uma lambida.

Se eu fosse um cachorro, bastaria me aproximar e lamber. Ela adoraria. O namorado até coçaria minhas orelhas. Fico pensando: quando perdemos a maneira franca e direta de estabelecer um relacionamento, como fazem os cães? E outros animais, é claro. Leão não precisa cantar leoa. Macaco agarra macaca. Abelha pega o zangão – mas essa é uma história com final trágico, em cujo exemplo é melhor não me espelhar.

A verdade é que, quando somos crianças, ainda temos algo dessa espontaneidade mamífera. Uma criança é capaz de abraçar alguém que vê pela primeira vez, só porque gosta. Quando quer colo, pede. Sem culpa. Até essa atitude, considerada normal há algumas décadas, tornou-se suspeita nos dias de hoje. Certa vez, num livro americano, o personagem evitava passar a mão nos cabelos de uma garotinha simpática, por medo de ser acusado de pedofilia. Hoje em dia, em países como os Estados Unidos, evita-se até mesmo pegar o elevador sozinho com uma criança. A maior parte das pessoas tem vontade de abraçar e beijar uma criança por afeto, simplesmente. Devido a uma minoria doentia, até esses gestos de carinho puro passaram a ser evitados.

Na infância, a gente aprende que não pode correr e abraçar qualquer pessoa, expressar afeto espontaneamente. Abanar o rabo, como minha cachorra Luna – de forma figurativa, faço questão de frisar.

Chamam a isso polidez, educação. Normas de uma vida civilizada. Em certas ocasiões, bem que eu queria dar umas lambidas por aí. A civilização é realmente muito chata.

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